quinta-feira, 15 de abril de 2010

No orelhão


O dia era domingo, verão estilo aquecimento global, praia lotada, ruas lotadas, coletividade disposta a ver o sol a pino. Corpos ao sol, estirados na areia, marzão domesticado como piscina. Ambulante de coxinha, empada, sanduíche, salada de frutas, queijo, mate e o que mais couber no isopor.

Ás 13h, o casal em lua de mel - vieram de Minas para curtir o tal do Rio de Janeiro efervescente que disseram pra eles -, cansados do calor, da multidão apertada na areia e do soléu - resolveram voltar para o hotel.

- Vamos pela sombra tá, eu não aguento mais tanto sol, disse a mulher, franzina, acanhada e quase um pimentão.

- Tá bom, meu amor. Então vamos pela calçada do outro lado da rua, comentou o marido.

Foram. Na calçada do outro lado da rua (onde há sombra por conta dos prédios gigantescos), enquanto eles passam pelo prédio número 53, toca o orelhão. Eles se olham, olham em volta, de repente alguém estava esperando a ligação do orelhão. Ninguém aparece. O orelhão continua tocando.

Ele lembra que já viu um filme em que o orelhão no meio da rua toca e eram todos terroristas do outro lado da linha. Ela reflete sobre a probabilidade de alguém telefonar para um telefone público na praia e alguém atender. Pois ela mudou toda a probabilidade do momento e atende.

- Alô? - diz a mulher, um pouco encabulada, mas a essa altura a curiosidade já era muito maior que a timidez.

- Oi, será que você poderia me dizer se tá sol aí... - disse a voz do outro lado da linha.

- Tá, uai... sol de rachar... - respondeu a mulher, sem entender nada.

- Mas e o mar, tá bravo ou dá pra tomar banho? - perguntou a voz.

- Tá igual piscina, dá pra tomar banho tranquilo - informou a mulher.

- Ah, então tá, brigada viu. E a voz desligou.

O marido, que ficou afastado do orelhão com medo de que a coisa explodisse, até tentou impedir a mulher de atender o telefonema, mas não deu tempo. Só viu a mulher batendo papo, em um orelhão público, na praia, no Rio de Janeiro, momento esse que venceu a probabilidade de isso não acontecer.

- Quem era? - perguntou o marido

- Sei lá... esses cariocas não batem bem não... por que alguém liga pro orelhão da praia só pra saber se a praia tá boa? E como sabia que alguém ia atender? - comentou a mulher.
- Ah, então vamos ficar mais um pouquinho... a praia tá tão boa.... - falou o marido, com cara de manha.
Voltaram pra areia. Agora foi mais difícil arranjar um espaço, porque àquela hora ninguém se importava com raios UVA e UVB, todo mundo queria estar de frente para o mar. Divertiram-se até o pôr-do-sol naquele burburinho como cariocas da gema num efervescente domingo de verão do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

No pior somos melhores?


Constantine (que é o Keanu Reeves...) descobre o plano brilhante-maquiavélico do anjo: abrir as portas do inferno. Como desgraça pouca é bobagem, o anjo acha que liberando a entrada pra demoniada em geral vai tornar os humanos mais humanos. Ele chegou à conclusão de que o ser humano só conseguiu desenvolver a bondade nos momentos de tragédias da história, então trazendo o inferno pra Terra a bondade vai aflorar...

Lembrei desse filme quando li o texto do blog do Sakamoto "O aguaceiro no Rio pode levar a uma cidade mais justa?. Sakamoto se pergunta (e nos pergunta) se ricos e pobres, "dividindo a mesma situação, talvez enxergassem no outro não apenas um personagem na TV e sim um igual e juntos buscassem uma solução". Taí um pouco da mesma lógica do anjo: se todos estamos no pior, podemos nos tornar melhores, porque nesse caso, inusitadamente um rico se preocuparia com um pobre e vice-versa e então a utopia de uma sociedade "livre, justa e solidária" daria um passo à frente...

O problema é que no pior também podemos nos tornar muito piores. Em meio à barbárie - e nem precisa ser durante a guerra - há decadência moral e mais barbárie. E olha que o Saramago já mostrou bem do que somos capazes em meio à barbárie no Ensaio sobre a Cegueira (cada um daqueles personagens podia ser um de nós, já pensou nisso?)

Então, ser melhor ou pior no pior vai depender do quê? Vai depender de que tipo de sociedade queremos...