segunda-feira, 8 de julho de 2013

Uma questão de pisada


A marca da pisada, aquela marca que fica no solado do sapato, às vezes pra dentro, às vezes pra fora, era, segundo ele, característica da personalidade da pessoa. Julgava o caráter pela pisada. Por exemplo, se a pisada é pra dentro, com a sola gasta na parte interna do pé, a tal da pisada pronada, o camarada (ou a camarada) tem problemas de relacionamento porque, provavelmente, é excessivamente recalcado e tem muito sentimento guardado ao longo do tempo. E quando explode, explode.

Ainda segundo sua avaliação de personalidade, a pisada pra fora, que chamam de supinada e deixa o solado todo gasto do calcanhar pra fora, proporciona ao proprietário um temperamento muito extrovertido, mas também de gostos e amores fulgazes, que se esvaem no mesmo tempo de duração da fragrância de um perfume francês, em algumas horas.

Ainda tem a personalidade neutra, igualzinha à pisada neutra, que não é nem pra fora e nem pra dentro, é meio termo. Pessoas assim, ele dizia, não são muito confiáveis, porque podem mudar de lado ao sabor do vento e vento também não é lá muito confiável porque muda de lado o tempo todo.

Tem gente que ganha a vida com a leitura de cartas, leitura de mãos, leitura da borra de café. Ele, não, porque não gostava de adivinhação. Ganhava a vida analisando sola de sapato e os detalhes sórdidos dos desgastes quase invisíveis. Claro que a avaliação não era preto no branco. Nem toda pisada pra fora era de personalidade fulgaz e nem toda pisada pra dentro era um recalcado por completo. O segredo do estudo perfeito da personalidade era achar desgaste por desgaste no solado, somá-los à pisada e então fazer cálculos até chegar ao raio-X da pessoa.

Seus amores e amigos eram medidos pela sola do sapato de cada um. Igual a dentista, que avalia a pessoa pelo sorriso. Um dia, no elevador do prédio onde morava, conheceu uma mulher bonita, bem vestida, com um quê de sofisticação yuppie, um perfume arrebatador e um sorriso que iluminada o quarteirão. E era muito simpática. Encontrou-a todos os dias no elevador durante uma semana. Empolgou-se, mas nesse meio tempo analisou o salto da moça – superficialmente, porque não teve como ter contato com o solado de forma exclusiva – e então desistiu de qualquer cantada. A sola do salto revelava que uma mulher ciumenta em excesso, disciplinada em excesso, mas completamente desarvorada no quesito dinheiro. Mulher ciumenta, neurótica e gastadeira não era seu perfil de mulher favorita. Partiu pra outra sem nem tentar.

Para amigos, preferia os de pisada pra fora, porque antes um amigo fulgaz do que um deprimido pra sempre. Fugia das pessoas com pisada neutra porque eram muito difíceis de lidar, o estresse para saber o que estavam pensando ou sentindo cansavam-no antes mesmo de conhecê-los.

Na Páscoa passada, adoeceu, sabe-se lá do quê. Passou 15 dias internado no hospital, vivendo de soro e antibióticos. Recebeu algumas visitas, todas dos amigos de solas neutras, que não eram muitos já que descartava quase toda sola neutra que via. Alguns clientes desesperados também foram visitá-lo, a maioria na esperança de encontrar o grande amor ou a fortuna pela sola de um sapato.

Num desses dias, um cliente que estava completamente apaixonado por uma sola louca, intempestiva e inconsequente, perguntou:

Você já analisou sua sola alguma vez?

- Uma vez... - respondeu.

- E então?! - o cliente perguntou, não querendo se intrometer na intimidade, já se intrometendo.

- Então o quê? - fez-se de desentendido.

- Então, como é sua sola? Que personalidade é a sua? - insistiu o cliente.

- Minha sola é comum, igual a várias outras por aí – desconversou.

Mentira. A sola dele era um achado. Nunca tinha visto sola mais controversa, porque era uma coisa e imediatamente o seu contrário. Não conseguiu explicar porque sua pisada parecia dar uma volta completa no solado e isso indicava que não era estável, tinha mania de certeza e julgamento em excesso. Não era apegado, mas também não se desapegava de certas certezas. Não gostava do certo, mas se afastava do incerto.

Ao estudar o próprio solado ficou tão confuso que desistiu. Nunca tinha errado uma avaliação, mas também nunca tinha tentado conhecer aqueles e aquelas cujas solas de sapato não condiziam com sua avaliação para saber se estava certo, ou errado. Não tinha conquistado um grande amor, porque nenhuma sola era perfeita. Já tinha até se apaixonado, mas pisadas imperfeitas e complexas o afastavam.

Saiu do hospital e continuou atendendo na Rua Miguel de Lourdes, nº 31, Centro. A placa na fachada dizia: “Personalidade é uma questão de pisada. Traga a sua.”