sábado, 1 de maio de 2010

Mundo Animal

Ilustração de Jano


Andando pela calçada esquerda, ele olhou para cima e por um instante a claridade do dia o fez fechar os olhos franzindo a testa. Quando os abriu, o mundo já não era mais o mesmo. Ao passar pelo ambulante da calçada esquerda - que ali estava todos os dias, àquela mesma hora, naquele mesmo pedaço de calçada esquerda - o ambulante sorriu com aquele sorriso de gato de Alice no País das Maravilhas. Pois ele nunca tinha reparado que o ambulante tinha todo aquele sorriso, tão largo, tão grande.
Mais adiante, passou pela loja de sapatos, onde sempre dava uma espiada na vendedora loura, estilo Marilyn Monroe com Afrodite, alta e simpática. Naquele dia, ela estava na porta da loja. Quando passou, viu, pela primeira vez, que ela parecia uma avestruz elegante. Ainda assim irresistível, pensou ele. Naqueles mínimos segundos (como acontecia todos os dias quando passava em frente à loja de sapatos), sentiu um aquecimento do lado do coração, uma explosão de felicidade correu nas veias e continuou a caminhada como um louco apaixonado, assobiando um samba triste do Cartola.

Antes de chegar ao trabalho passou na padaria e pediu o de sempre: uma boa média que não fosse requentada e um pão com manteiga. O atendente que lhe trouxe o pedido levantou a cabeça. Tinha cara de porco espinho. Resolveu dispensar naquele dia o café e o pão. Ficou com medo de morrer espetado enquanto engolia a refeição.

Chegou na repartição e foi direto para o computador. O colega do lado, puxa-saco de plantão, veio puxar conversa, para saber das novidades e contar alguma vantagem. Olhou para ele e ele tinha cara de cachorro. Ah, tinha de ser, pensou ele.

O chefe chamou. Ele deixou o colega-cachorro falando sozinho. Na sala do chefe, pensou que cara teria o chefe, se fosse de dragão com certeza pediria demissão. Nada. O chefe tinha cara de cavalo. Graças a deus, pensou, cavalo é o tipo de bicho que dá pra conviver.

Recebeu as ordens do dia e antes de começar a colocar a mão na massa foi ao banheiro. Antes de se olhar no espelho pensou que se tivesse cara de hipopótamo, ia voltar para casa e se trancar no quarto, porque hipopótamo era um bicho muito esquisito. Abriu os olhos: tinha uma cara assim meio de sabiá. Ele sempre suspeitou que pudesse voar...